Causas identitárias: os métodos importam

Opinião
Publicado por Américo Rodrigo
31 de janeiro de 2022 às 08h45min
Foto: Brizza Cavalcante

Por Maurício Rands*

As pautas identitárias significam avanço civilizatório para a emancipação humana. A identidade racial, étnica, de gênero ou de orientação sexual pode definir condições de bem-estar e felicidade. Não deveria. Porque impor barreiras aos grupos discriminados é atraso civilizatório que já deveria estar superado desde o Iluminismo. O problema agrava-se porque vivemos num ambiente determinado pelos algoritmos que potencializam os preconceitos. Os blogs, sites e influenciadores que seguimos podem nos agradar por falarem o que queremos ouvir. Afinal, cada um de nós tem o algoritmo que merece. Nossos clicks são captados pelas plataformas que logo nos retornam algo relacionado. Basta entrar no site da Amazon ou num de viagens. Na sequência vamos ser bombardeados com o que demandamos. E aí corremos o risco de ficar prisioneiros. O mesmo ocorre com as notícias que buscamos. Por isso, não é fácil escapar das nossas bolhas.

Nas bolhas, os preconceitos reproduzem-se nos dois sentidos. Contra e a favor das pautas identitárias. A superação do machismo, da xenofobia, do racismo e da homofobia são objetivos emancipatórios que podem eliminar muito sofrimento humano. Mas o sucesso dessas causas não é independente da forma e dos métodos empregados. Se ficarem prisioneiras de uma solidariedade sectária podem se transformar em manifestações irracionais. Se abafarem o contraditório, arriscam produzir reações intensas em sentido contrário. E a facilitar a ascensão do populismo de extrema direita que captura os ressentimentos daqueles que não se identificam com essa ou aquela pauta identitária.

Por mais que seja justa a causa, não se justifica que a sua defesa resvale para a arrogância moral de quem imagina que os seus valores e métodos são sempre os certos. E que devem ser impostos a todos. Às vezes, quem discorda dessa ou daquela proposta específica de um movimento antirracista, ou feminista, ou ambientalista, é logo acusado de algum ismo. Como se a causa do combate a esse ismo fosse monopólio desse ou daquele movimento. A consequência é a formação de uma legião de opositores que, na primeira esquina, passam a combater a própria causa de quem as defendeu sectariamente.

Esquecem alguns candidatos ao monopólio da virtude que foi justamente o ambiente de tolerância que lhes possibilitou emergir. Foram os princípios liberais da liberdade de pensamento e expressão que viabilizaram o contraditório. E que, portanto, permitiram a superação das ideias racistas, homofóbicas, machistas ou ambientalmente irresponsáveis que um dia prevaleceram ou que ainda prevalecem em certos círculos.

Nesse ambiente de fragmentação e estridência das redes sociais muitos começam a duvidar da própria racionalidade humana. E aí surge a necessidade urgente de revisitarmos os instrumentos desenvolvidos pela razão. Para isso, servem-nos algumas boas companhias. Como as de Karl Popper e seu princípio da falseabilidade (The Logic of Scientific Discovery, 1959), Thomas Kuhn e sua concepção de que o avanço do conhecimento científico acontece em saltos de novos paradigmas (The Structure of Scientific Revolutions, 1962) e Steven Pinker com a sua crença na capacidade de ferramentas como lógica, pensamento crítico, probabilidade, correlação e causalidade (Rationality, 2021). Essas ferramentas da racionalidade ajudam-nos a escapar da superficialidade das redes. Podem nos vacinar contra certos métodos que, por intolerância e fundamentalismo, acabam por dividir até mesmo os que combatem as discriminações e os preconceitos. Esses autores ajudam-nos a compreender a importância do confronto de ideias e dos métodos científicos. Podem ser muito úteis não apenas para enfrentar o debate com os negacionistas de toda ordem. Mas também podem ajudar as causas identitárias a serem mais bem sucedidas se forem bem defendidas. Podem ajudá-las a ir além dos clichês e a admitirem o contraditório para o bom debate. Um bom começo é evitar a prática do cancelamento, inclusive o auto cancelamento em que há pouco sucumbiu até mesmo um gênio da cultura brasileira como Chico Buarque. Logo ele que sempre revelou uma especial sensibilidade para a questão das mulheres em suas músicas.

*Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Américo Rodrigo

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