
Por Delmiro Campos*
O Carnaval no Brasil transcende a mera celebração. É um fenômeno que pulsa na veia da identidade nacional, um feriado que, embora não seja uniforme em sua oficialidade – dependendo de leis estaduais ou municipais –, mobiliza milhões de brasileiros. Trata-se de uma catarse coletiva que mistura alegria, crítica social e, inevitavelmente, política. Sua essência remonta a tradições pagãs europeias, adaptadas ao solo tropical com uma extravagância que só o folião brasileiro sabe expressar.
Há quem o relacione, em sua origem, ao período anterior à quaresma cristã, um momento de excessos antes da contenção. No Brasil, porém, ele se desprendeu dessa amarra bíblica para se tornar um grito de liberdade, um palco onde o povo se manifesta, muitas vezes ironizando o poder.
Não à toa, o Carnaval é, em muitos sentidos, a abertura quase que oficial das grandes discussões políticas de cada ano. Rivaliza em apelo com as festas juninas do Nordeste ou outras celebrações regionais, como as cavalhadas no Centro-Oeste ou o Bumba Meu Boi no Norte.
Nos anos eleitorais, esse palco festivo ganha contornos ainda mais delicados sob a perspectiva jurídica. A Lei nº 9.504/1997, que rege as eleições, e as resoluções do TSE criam um ambiente de vigilância em que o carnaval pode ser rapidamente transformado em alvo de representações.
A propaganda eleitoral antecipada, vedada pelo artigo 36, caput, da referida lei, surge como risco iminente. Isso ocorre quando agentes públicos ou pré-candidatos utilizam a visibilidade da festa para promoverem suas imagens de maneira implícita ou explícita, ainda que sem pedido direto de voto. Mais grave ainda é o uso do carnaval como instrumento de abuso de poder político ou econômico. Isso se verifica especialmente quando verbas públicas são destinadas ao patrocínio de blocos, trios elétricos ou eventos que, na prática, servem como vitrine para determinados atores políticos.
O TSE já consolidou entendimento nesse sentido. No julgamento do Recurso Ordinário nº 2249-49, relatado pelo ministro Edson Fachin em 10.10.2018, a Corte reconheceu que a participação ostensiva de agentes públicos em eventos festivos, custeada pelo erário, pode configurar abuso, dependendo da intenção e do contexto, um alerta que ressoa diretamente no carnaval.
Nos anos sem eleições, a ausência de pleitos não significa um vácuo regulatório. É justamente nesse período que o carnaval revela um campo fértil para práticas que desafiam princípios constitucionais como a impessoalidade, inscrito no artigo 37 da CF.
Gestores públicos frequentemente aproveitam a visibilidade da festa para promoverem suas imagens. Isso ocorre por meio de patrocínios questionáveis a blocos e eventos ou pela presença ostensiva em espaços públicos, muitas vezes custeada com recursos do tesouro.
Tais atos, quando desprovidos de justificativa legítima, podem configurar improbidade administrativa, nos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/1992, que pune a violação aos princípios da administração pública.
O Superior Tribunal de Justiça reforça essa ideia. No julgamento do REsp nº 1.775.668/SP, relatado pelo ministro Herman Benjamin em 19.3.2019, firmou que o uso de recursos públicos para promoção pessoal em eventos de grande porte caracteriza desvio de finalidade, passível de sanção por improbidade, um precedente que se aplica perfeitamente ao carnaval.
Some-se a isso o uso das redes sociais. Perfis oficiais de gestores, mantidos com suporte institucional, muitas vezes replicam o estilo e a produção de conteúdos pessoais, confundindo os limites entre o público e o privado.
José Afonso da Silva, em “Curso de Direito Constitucional Positivo” (43ª ed., Malheiros, 2020), alerta que a publicidade estatal deve informar, jamais promover. Esse princípio se vê ameaçado quando equipes contratadas pelo erário turbinam narrativas pessoais disfarçadas de institucionalidade.
Diante desse cenário, o combate aos excessos não depende apenas da Justiça Eleitoral, que, fora dos anos de pleito, mantém-se distante dessas discussões. Ações populares, previstas no artigo 5º, LXXIII, da CF, emergem como instrumento poderoso.
A sociedade civil pode questionar gastos injustificados ou promoções disfarçadas. Um exemplo seria o financiamento de eventos carnavalescos que beneficiem desproporcionalmente a imagem de um gestor, sem retorno claro à coletividade. Celso Antônio Bandeira de Mello, em “Curso de Direito Administrativo” (33ª ed., Malheiros, 2018), sublinha que o desvio de finalidade é o cerne da improbidade.
Compete aos mandatários e postulantes buscarem a promoção de suas imagens, mas sempre distante do financiamento público. Nesse contexto, as redes sociais amplificam o desafio, especialmente com o poder de influenciar de perfis que, muitas vezes, forjam conteúdos para moldar narrativas, potencializando o risco de desvios.
Contudo, é imperativo que esse controle não resvale em censura. O carnaval carrega em si a verve crítica e porque não permitir que a política também extravase.
Exemplo disso foram os gritos espontâneos, por mim testemunhado, de “meu presidente” que ecoaram para Gusttavo Lima em sua apresentação no Carnaval Boa Viagem (Recife, 03.02.2025), sem qualquer provocação ou montagem – uma manifestação genuína de carinho que não pode ser tolhida. O debate aqui proposto busca coibir abusos, jamais inibir o pulsar popular ou o desejo legítimo dos agentes políticos “surfarem essa onda”!
Eu vejo o carnaval como um espelho da alma brasileira, um momento em que a extravagância e a crítica se encontram. É também um terreno escorregadio onde o poder público tenta, às vezes, se travestir de folião.
Não é fácil traçar a linha entre o legítimo e o abusivo, mas acredito que ela existe. Passa pelo bom senso e pela preservação da festa como espaço de liberdade, sem deixá-la virar palco de oportunismos custeados pelo dinheiro de todos nós.
É isso, que se inicia a quaresma!
*Advogado eleitoral